Havia no Carira antigo uma casa que
pertenceu a alguns proprietários. Ela tornou-se famosa na condição de
bodega de Zezé Martins, neto do vaqueiro João Martins e um dos maiores
comerciantes da época. Talvez pudéssemos compará-la com as mercearias de
hoje. Segundo pessoas mais velhas, era o destino certo para quem
procurasse secos e molhados. O produto mais citado por elas é charque,
localmente chamado de jabá. Não sabemos situar precisamente essa casa,
mas ao que tudo indica ficava na atual rua coronel Manuel Dantas.
Para
melhor compreensão do que dizemos, resolvemos postar um texto da obra
"RETALHOS DE HISTÓRIA (ATRAVÉS DE UM CENTENÁRIO DESCONHECIDO)", de
Olímpio Rabelo de Morais. Foi publicada em 1966, um ano após se
completar um século de fundação de Carira. O texto em questão é
intitulado HISTÓRIA DENTRO DA HISTÓRIA. Com a palavra, o próprio
Olímpio:
"Quem conheceu o CARIRA de 1950 atrás, há de se
lembrar, como eu me lembro bem, da bodega de seu ZÉ MARTINS, um dos
pontos domingueiros mais frequentados da Vila. Casa localizada à entrada
da feira, chegada natural e atraente aos feirantes, conheci
estabelecimento comercial dos mais movimentados da época.
Antes que eu a conhecesse, porém, ela a mim me conheceu, à luz do meu 10 de dezembro de 1911.
Esquecer
aqui o velho HENRIQUE LAMEU, seu construtor e dentro dela, na primeira
década do século atual, o maior comerciante de seu tempo, seria falta
imperdoável, da qual, ordinariamente, nos acusa, absorvidos pelo
Progresso, o nosso descuido na decadência do passado.
Presenciei
menino, em 1918, nesta mesma casa, ser alvejado a tiros de "mauser", em
discussão, pelo soldado Morais, o subdelegado FLORO RABELO.
Já em
1920, morador-proprietário se conhecia CAPITÃO CHIQUINHO, cuja desavença
com a sociedade local, muitas vezes levada pela incompreensão do meio,
foi motivo para que, em uma noite de SÃO JOÃO, se concentrassem sobre
ela, em fogo cerrado das batalhas a busca-pés, festejos indesejáveis.
Tão ao gosto do povo essa brincadeira primitiva que só veio a
desaparecer do nosso folclore como que por imperativo salutar de
Civilização. Apesar de tudo, via-se no NORDESTINO-CAPITÃO homem de
espírito adiantado ao meio ambiente: construiu em sua residência - que
até então ninguém o fizera, em todo o povoado, no atraso e pobreza de
nossa gente - cisterna e platibanda. Trouxe, por isso, ele, ao mesmo
tempo, conforto ao lar e à povoação, estética.
No último domingo de
novembro de 1929 desmontava, às cinco horas da manhã, na bodega de seu
ZÉ MARTINS, LAMPIÃO com seus nove cabras, de passagem para Capela.
Dela
recolhi ainda, pelas narrativas sempre agradáveis do velho JOVINO
MARTINS, os fatos mais importantes na formação da vida local.
Tem esta casa, pois, a sua história dentro da História, a viver hoje na decadência do passado, condição natural do Progresso.
Neto
do velho JOÃO MARTINS, fundador de MÃE CARIRA, como ninguém, conhecia
ele, o velho JOVINO, os acontecimentos mais importantes aqui ocoridos em
épocas remotas. Ouvi-lo era para mim um prazer.
Velhinho baixo,
alvo, comunicativo na prosa, apenas alfabetizado, bigode aparado,
clássica bengala à mão, passo miúdo - assim conheci seu JOVINO, já
maduro, de cuja memória quero me valer hoje na revivescência da nossa
formação histórica. Faleceu há pouco tempo, em São Paulo, com mais de 90
anos.
Fundada há cem anos CARIRA DE JOÃO MARTINS, nesta distância já
sentimos desaparecer, mais e mais, os últimos vestígios do nosso
passado.
Antes que se nos apague de todo, na distância do tempo, esse
contato de geração a geração, desejaria me valer da memória, como
principal ou quase única fonte de informações recolhidas dos nossos
antepassados, para registro dos fatos, na preservação do que possa
restar ainda para formação do nosso patrimônio histórico.
É isso que
eu pretendo fazer, no silêncio comemorativo deste centenário de 1965,
legando às futuras gerações estes "retalhos de história", como
contribuição que se possa dar, talvez das menos valiosas."
A
modéstia com que Olímpio Rabelo conlui o texto é descomunal. Enganou-se
redondamente nosso primeiro prefeito se achou que foi contribuição "das
menos valiosas" o que ele escreveu sobre a história de Carira.
O que
saberíamos nós carirenses dos períodos primitivos e remotos de nossa
história se não fosse a obra escrita desse nosso vulto? Muito pouco. É
inegável a importância da carreira e obra política de Olímpio, as quais
culminaram com nossa emancipação, pela Lei Estadual n° 525A, de 1953;
mas também é bom enfatizar sua preciosa contribuição escrita: RETALHOS
DE HISTÓRIA (ATRAVÉS DE UM CENTENÁRIO DESCONHECIDO) e MEMÓRIAS.
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